Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos,
de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil
compreensão científica.
A sua física é idêntica à física óptica de uma fotográfica:
o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro.
Mas existe algo na visão que não pertence à física. William Blake sabia disso e afirmou:
"A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê".
Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos,
sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma
epifania do sagrado.
Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a
morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque
ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura.
Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia.
Olho para uma pedra e vejo uma pedra".
Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra.
A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.
"Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.
Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios",
escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.
O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.
Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da
educação é ensinar a ver.
O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é
uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do
"terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no
zen-budismo, mas o ato é que escreveu: "Agora os ouvidos
dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos
se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada
de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado.
Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente:
ao partir do pão, "seus olhos se abriram".
Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em
Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão,
o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar
assombrado que tudo naquela mesa garrafa, prato, facão era
ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em
construção". A diferença se encontra no lugar onde os olhos
são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas,
eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática.
Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas e
ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer.
Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam...
Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se
transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem,
olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos
dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos,
das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as
crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver
aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo
fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente:
"A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como
as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha
devagar para elas". Por isso eu acho que a primeira função da
educação é ensinar a ver eu gostaria de sugerir que se criasse
um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar,
mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos
desvãos da banalidade cotidiana.
Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria
partejar "olhos vagabundos".
Rubem Alves
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